31/01/2007

Mendigo-Blue

Uma dona de casa, arrumando sua cozinha, ouve alguém bater palmas em frente à sua casa. Ela vai até o portão e vê um mendigo parado. Ao vê-la, ele pede: "A senhora poderia me dar um prato de comida, pra me ajudar. Por nosso Senhor Jesus Cristo?" Ela, meio a contragosto, mas para não desagradar a Deus, abre o portão e ordena que o mendigo espere na varanda. "Por que ele tinha que botar Cristo no meio?" pensava mal-humorada. Requentar o almoço e trazer a comida não levou mais do que dez minutos, mas quando finalmente sentiu o cheiro e recebeu o prato em suas mãos, o mendigo também foi acusado, pelo marido da mulher, que havia dado falta de seu relógio, de roubo. Levado à delegacia, com o prato ainda em suas mãos, foi questionado pelo delegado. "Não fui eu não sinhô" defendia-se. A esposa chega à delegacia e dá a notícia de que o relógio havia sido encontrado dentro de casa, em uma gaveta. O mendigo protesta: "Falei que não foi eu. Agora me devolve o meu prato de comida".
Essa foi a senha para que o delegado derrubasse o prato, que estava sobre a mesa, e desse um soco na cara do mendigo, que depois ainda teve seu rosto chutado, perdendo dois dentes. Além do desfalque dentário, os olhos inchados pela bebida, a pele enrugada e suja e as roupas doadas e malcheirosas devido a uso excessivo ajudam a construir a aparência de Jorge. Jorginho, como o chamam, é morador de rua "desde os cinco anos" segundo ele e figura residente na esquina das Ruas Sete de Setembro e Rua dos Andradas, em Campos. Jorge, de olhar caído e cabisbaixo, faz questão de cumprimentar, sempre com bom humor, todos aqueles que passam pelo local e lhe cumprimentam de volta. "Aqui, todo mundo gosta de mim, desde o alfaiate, o pessoal da barbearia e os do armazém. Eles me dão dinheiro e pedem pra eu ir ao supermercado pra eles. Só quem não gosta é o dono da padaria, que espanta a gente e não dá nem um pãozinho. Só o filho dele é que dá, mas tem que ser escondido".
Além de morador de rua, Jorge é andarilho. Percorre grandes distâncias a pé, mas sempre volta para a esquina que ele chama de casa. "Fui a Niterói e voltei a pé, agora quero ir pra outros lugares". Animado, ele conta histórias com a habilidade de quem já viveu muita coisa, sempre na rua. Dorme próximo ao mesmo local, não importando o tempo. Triste, pode ficar durante horas olhando para o espaço vazio, dopado pela cachaça ou pensamentos tristes. "Já passei por muita coisa" pensa ao proferir a frase. Geralmente, é encontrado dormindo, deitado no chão. O olhar morto só é interrompido para contar mais casos.
Um funcionário de um abrigo público em Campos explica que metade do que Jorge diz é lenda. "Ele tem casa, mas por problemas mentais, vive na rua. Existem dois tipos de pessoas nas ruas: as pessoas DE rua e as pessoas NA rua. Jorge é uma pessoa NA rua, que são aqueles que tem um lar, mas que por algum motivo, insistem em sair de casa e ficar perambulando por aí. Os outros não tem mesmo nenhum amparo social". "É muito fácil viver na rua, onde todos lhe dão comida e dinheiro e não é preciso trabalhar". Será? Ele jura que não é verdade, que não tem ninguém nesse mundo. "Não tenho família, mas tenho amigos, todos moradores de rua, tudo como eu". E volta a sentar-se no meio fio, olhando sempre as pessoas de baixo para cima, como se fosse inferior. Triste por estar ali, feliz por ter atenção e com quem conversar.
De repente, seu rosto se ilumina, a esperança cresce e as mãos começam a tremer. Molha os lábios e, diante de uma certa expectativa, chega ao momento crucial da conversa: "Você pode me arrumar uns cinquenta centavos aí?". O rosto fica novamente escuro, triste e desconfiado, quando obtém a resposta: "Não cara, hoje não tenho, deixei a carteira em casa". É o fim do papo. A vida segue na rua, e os olhos tristes e ao mesmo tempo alegres de Jorge, continuam a esperar, não se sabe o que, sentados na esquina da padaria, entre as ruas Sete de Setembro e Andradas, no cantinho que ele chama de lar.

19/01/2007

Revolução

Os passos apressados e firmes pelas ruas tortas indicam insatisfação. Cabeça sempre erguida, pensando em como as coisas acontecem. Olhando as pessoas, vê que já é hora de chutar de volta toda imundície que lhe é atirada todos os dias, por todos os lados. O balançar das mãos e dos pés, rebatem, como armas de fogo, tudo aquilo que não presta, devolvendo o lodo a seus respectivos donos. Pegando um folheto distribuído no centro, ele salva vidas, como um super-herói. Salva pelo menos alguns centímetros cúbicos de asfalto de serem sujos. Salva pelo menos uma pessoa de ser bombardeada com uma propaganda inítil. Álguém poderia escorregar e cair, outros, poderiam escorregar e comprar. Um anjo vingador, cambaleando pelas ruas. Sua jaqueta suja à prova de balas, fogo, água e feromônica é sua armadura. Suas idéias, seus ideais sua cabeça dura e sua inteligência são suas armas. Assim ele vai, proclamando sua própria revolução em cada passo, cada olhar que encara de volta. Não quer ir no meio do povo e pregar, quer apenas tirar, pelo menos um, do meio da multidão. Se no caminho o queimarem, as cinzas voarão com o vento e cairão nos olhos dos perseguidores, cegando-os.
Há quem diga que ele seja invencível. Há quem diga que não passe de um fracasso. Se é bem verdade que todas as pessoas possuem um ponto fraco, o dele fica justamente onde sua maior força se concentra: no peito. Ele já quase morreu diversas vezes por ali, mas os seus inimigos se esqueceram do 'quase'. Os amigos também. Forte e duro como o aço, isso não é suficiente para matá-lo, embora já esteja se tornando de conhecimento público que é por dentro que se derrota um homem assim. Ali, bem naquele ponto, perto de onde o escudo sagrado do clube repousa silenciosamente, absoluto. As três cores agem como um antídoto em muitas situações, servindo como um bálsamo restaurador, curando, fortificando. Algumas vezes, nem as três, por mais fortes que sejam, conseguem tirá-lo das armadilhas plantadas por seus perseguidores. O desejo e a imanência matam e corróem, sempre por dentro. Ferindo e destruindo expectativas. Angustiando e dando esperança. O peito é morte e redenção. É mais fácil ler o que lhe dizem, do que ouvir as mesmas coisas. Com olhos encarando, o masscre é maior.
Um dia, ele percebeu, enfim, que está sob a superfície para ajudar. Para dar aos outros o que ninguém lhe dá. Talvez, por ter compreendido o seu próprio sentido, esteja tão tranquilo e pronto para sobreviver. Pode agora, parar um trem com as mãos, abrir o solo com os pés ou até mesmo saltar do mais alto prédio sem sofrer arranhões. Mas foi pego desprevenido quando um certo avião caiu na sua cabeça. Teve que se curvar e aprender a levantar debaixo disso tudo. A análise da caixa preta o alertou do que devia fazer e o colocou no caminho certo. Ah, se pelo menos ele pudesse prever o futuro... Mas está quase chegando lá. Quem sabe com um pouco mais de treino. Até lá, fica a velha esperança de que um dia, possa renunciar a todos os seus poderes e cair em um colo receptivo para descansar para sempre.

07/01/2007

Josephine

Quarta-feira, 20h 30. Alex estava sentado à mesa, sozinho, em seu pequendo apartamento. Dividia espaço com farelos de pão e restos de comida, que pousavam entre seus braços cruzados. Noite mal dormida. Noites mal dormidas. Faziam dois dias que não conseguia fechar os olhos e descansar. Sua face estava branca como um cadáver e olheiras negras rodeavam-lhe os olhos, fazendo com que seu rosto se parecesse com uma macabra fantasia de Dia das Bruxas. Sua cabeça latejava. Mais do que a enxaqueca natural por não descansar, um pensamento lhe queimava as têmporas. Batia, doía. E ele já não conseguia suportar a dor. Tinha que fazer algo. Seu pensamento, sua obsessão. Em sua cabeça vazia de cadáver, só uma coisa lhe convinha.

(Josephine...)

Levantou-se cambaleando. Quatro ou cinco passos o levaram até o quarto, passando pela Tv e o velho sofá, onde baratas e pôsteres na parede pareciam lhe observar. Será que estava ficando louco? Será que estava ficando sem juízo? Ou será que seu estado lamentável estava tão claro que até mesmo os móveis da casa podiam ver? Pegou seua jaqueta de couro. Vestiu. Braço esquerdo, braço direito. Um de cada vez. Devagar. Estava preparado para sair na noite fria. Destrancou a porta. Abriu. Não trancou de volta. Não precisava. O apartamento empoeirado nada era perante aquilo que ele buscava. E ele sabia exatamente o que era.

(Josephine!)

Desceu a rua devagar. Enquanto passava pelas calçadas, pedestres noturnos que dividiam a noite com ele o olhavam nos olhos. Aquilo causava incômodo, mas Alex já não tinha forças para fazer muita coisa, só pra continuar a caminhar. Expressão vazia. Braços jogados. Uma força o movia apenas para a frente. Trôpego. Foi quando avistou um bar. Mesmo com todo o seu delírio, não poderia deixar de reconhecer aquele local que tantas vezes o acolheu e que sempre oferecia as respostas para suas inquietações. O Absinto's. Era aqui que ele ganharia forças para poder chegar perto de seu objetivo.

(Josephine!)

Quando entrou no bar, todos que estavam ali olharam direto em seus olhos cansados. Ele respondia timidamente os olhares, mas não conseguia deixar de baixar a cabeça. Sentou se à beira do balcão, apoiando-se para não cair. Jonas, o dono do bar, olhou-o severamente, como sempre fazia com todos os clientes. Já eram 21h 12 quando a primeira frase saiu de sua boca em três dias. A voz saiu baixa, seca, como se pedisse socorro.

- Um conhaque...

O copo batendo na mesa o despertou um pouco de seu devaneio. No fundo do bar, uma figura saiu das sombras e se aproximou, fitando a cabeça baixa de Alex, que olhava para o copo. Era um homem baixo, com cerca de 1,68 m, na casa de seus 40 anos. trajava um peado casaco negro, sujo. Seu rosto também estava com uma aparência suja e com um olhar misterioso. Exalava um cheiro de sapatos velhos, guardados, acabados. Apesar de Alex não se lembrar de nunca tê-lo visto na vida, ele parecia saber bem o que estava acontecendo. O homem aproximou-se devagar, olhando diretamente para Alex. Com um movimento leve, colocou a mão no bolso direito, de onde tirou um pequeno punhal prateado. Estendeu-o a Alex dizendo:

- Pegue isso filho. Vai precisar.

Sem saber o porque, Alex tomou o punhal em suas mãos sem fazer perguntas e, antes que pudesse se dar conta do porque havia ganho aquilo, o homem já havia sumido. Seu cheiro também. Olhou em volta e os olhares dos demais ocupantes do bar persistiam na cena. Incomodado, tomou o conhaque em um só gole e levantou-se do banco. Dirigiu-se à porta sem pagar pela bebida e saiu. Jonas, que assistia à cena de perto. Não se preocupou em cobrar a dívida. Ele sabia que aquele conhaque ficaria como um último presente ao fiel cliente. Alex continuou sua caminhada, ainda pior pelo efeito da bebida, que parecia ter distorcido ainda mais seus pensamentos. Mas saiu pensando no que havia acontecido no bar, com o punhal em suas mãos. Por um momento, ele quase se esqueceu do que o havia feito sair de casa naquela noite.

(Josephine...)

Alex andou por mais de três quilômetros, sem encontrar ninguém pela rua. Gotas de suor escorriam por seu rosto e ele sentia calor em meio ao frio da noite. Finalmente chegou ao seu destino. Rua de Todos os Santos, número 53. O portão maciço, de cor cinza escuro estava à sua frente entreaberto, mostrando de relance o quintal, que parecia estar morto. Aquela era a casa em que ele havia estado há um mês e dois dias. Aquela era a casa que começou a transformar sua vida em algo que ele não sabia bem o que era. Ali ele estava. Bastava subir as escadas e ele encontraria conforto nesta noite tão fria. Ali estava o que ele veio buscar. Entrou no quintal, devagar. Apesar de estar no escuro, sabia muito bom por onde andar. Subiu as escadas. A porta da sala também estava encostada. Entrou sem medo, mas com uma enorme apreensão. Parecia que seu cansaço fora embora com a chegada àquele endereço e não sabia bem o porque.

Josephine era uma mulher diferente. E diferente era mesmo a palavra certa para descrevê-la assim como o fascínio que ela exercia sobre os homens. Olhando-se de longe, parecia mais uma garota do que uma mulher, com seu corpo magro, e seus longos cabelos lisos e negros. Chegando mais perto, notava-se que parecia mais uma obra de arte, esculpida centímetro por centímero pelas mãos de um habilidoso artesão. Seu rosto fino, com olhos pequenos, sombracelhas certinhas e boca carnuda nunca soube o que era ser ignorado por um olhar masculino. Todos, sem exeção, olhavam para ela na rua. Mas ela é quem decidia quando e por quem seria vista. Sempre tinha o controle da situação. Sua pele branca, refletia a luz por onde passava, fazendo com que ela brilhasse com uma luz amena e encantadora. Mas uma outra coisa era unanimidade sobre Josephine: ao mesmo tempo em que todos se sentiam atraídos por ela, sua presença provocava um certo incômodo, uma sensação de sufocamento, algo difícil de explicar.

- Josephine?

Alex chamou quando entrou no corredor que dava para o quarto de Josephine. Avistou a porta do quarto, que estava aberta. Caminhou até a entrada e olhou para a cama. Lá estava ela, deitada, trajando uma camisola preta, que contrastava com a sua pele. Estava deitada de lado, olhando para Alex, sem piscar, seus olhos negros bem abertos. Havia, porém, algo estranho neles. Eles pareciam ter sangue. Havia sangue refletido nos olhos de Josephine. Alex se aproximou, ajoelhou-se no chão, ao seu lado, como se estivesse em penitência diante de uma imagem. Segurou suas mãos, que estavam frias. Ela apenas olhava. Ele tentou falar algo, mas não conseguia dizer nada. A garganta doía. Quando ia pronunciar as primeiras palavras, ela silenciou-lhe, dizendo:

- Shh! Não precisa dizer nada querido, eu já sei de tudo. Estava esperando por você.

Josephine continuou na mesma posição, enquanto Alex encostou sua cabeça à beira da cama. Os olhos dela, que estavam iluminados com o brilho do sangue e da noite, de repente foram escurecidos por um vulto que apareceu atrás dos dois. Havia uma pessoa ali, de pé, parada diante deles. Alex, entorpecido pelo cansaço de dias de angústia e pelo conforto de ter finalmente encontrado o objeto de seu desejo, não viu quando o vulto cravou uma faca em suas costas. No momento do golpe, ele ficou paralisado, olhando para Josephine, que parecia olhar a cena como se já esperasse por aquilo. Ela estava séria, compenetrada, como alguém que olha para uma obra de arte tentando entendê-la. O estranho puxou a faca, fazendo o sangue de Alex jorrar. Alex então caiu no chão, onde, mesmo à beira da morte, não conseguia parar de olhar para Josephine, com olhos bem abertos. O outro arrastou Alex para um canto do quarto e tomou seu lugar à beira da cama, mãos dadas com Josephine, que fitava-o, enquanto dizia.

- Eu também sabia que você viria.

Alex, já com a visão turva, assitia à cena, caído no chão. Ao ver aquilo, o ódio tomou conta de seu corpo, fazendo com que o ferimento derramasse mais sangue ainda. Em seu devaneio, lembrou-se do caminho que percorreu até chegar ali, naquele momento. Lembrou-se do momento em que viu Josephine na rua pela primeira vez, a primeira vez que havia entrado em sua casa, há um mês e dois dias e de como sua vida havia mudado depois disso. A distância dos amigos, a falta de concentração no trabalho, a briga consigo mesmo e lembrou-se desta noite, do portão da casa, do Absinto's, do conhaque e... do estranho no bar.

- Pegue isso filho, vai precisar.

As palavras ecoaram na cabeça de Alex como um trovão. No mesmo instante, com alguma dificuldade, colocou a mão no bolso e tirou o punhal que havia ganho do homem. Apertou o punhal em sua mão e levantou-se. Com um movimento rápido e cheio de ódio, agarrou o cabelo do estranho que havia lhe apunhalado pelas costas, puxou-o para trás, e com o punhal, rasgou-lhe a garganta em um só golpe. O corte fez com que o pescoço do homem dobrasse para trás, escorrendo uma quantidade absurda de sangue. Ele não conseguia dizer nada, pois sua tarquiéia havia sido dividida em duas. Caiu no chão agonizando. Ao olhar para verificar se seu inimigo estava mesmo morto, Alex olhou seu rosto: ele estava branco feito um cadáver, com olheiras negras. Alex, horrorizado, se lembrou de seu próprio rosto no espelho, antes de sair de casa. No mesmo instante percebeu que o estranho havia passado pelo mesmo que ele. Estava ali também pelo mesmo motivo.

- Não...

Alex caiu no chão, com lágrimas nos olhos, arrependendo-se do que havia feito. Estava morto. Punhal na mão. Não conseguiu realizar seu último desejo: beijar Josephine. E ela, que assistia à toda a cena deitada, finalmente se levantou da cama. Sentada, observou os dois corpos mortos e sorriu. Não foi um sorriso completo, mas sim, um leve sorriso com o canto de seus lábios. Era como se uma história engraçada a agradasse. Já de pé, ela abriu o guarda roupa. Era hora de sair. Escolheu um vestido e dirigiu-se ao banheiro para se trocar. Ao olhar no espelho, uma revelação se fez diante dela. Seus olhos já não refletiam sangue, eles estavam límpidos e claros. O sangue agora estava cobrindo o chão de seu quarto, onde os cadáveres sem vida, sussurrando, insistiam por chamá-la.

(Josephine...)